FASCINADOS: uma perspectiva clássico cristã sobre a exposição excessiva às telas

 

O ano de 2020 é um daqueles períodos difíceis que muitos gostariam de esquecer, ou, se possível, simplesmente riscá-lo da existência. Contudo, períodos de tribulação e angústia são frequentemente também tempos de descobertas, são ocasiões que nos movem e nos sacodem, que nos levam a repensar e a reavaliar, a refletir sobre tudo e todos.  A situação que estamos vivendo, com suas políticas de distanciamento social e de quarentenas sem fim, tem revelado problemas graves e importantes, que embora onipresentes nas vidas de quase todos eram, até então, quase que imperceptíveis para a maioria das pessoas, dada a rotina frenética e alienante que vivemos. Um desses problemas é o tempo excessivo de exposição às telas dos aparelhos eletrônicos, o que tem se mostrado uma preocupação adicional e crescente para muitos pais e educadores.

O receio quanto aos perigos relacionados a esse tipo de exposição não é algo novo. Na verdade, é quase tão antigo quanto a própria invenção dos aparelhos televisivos. Os alertas já vêm de muitas décadas e tais perigos povoam desde cedo a imaginação de artistas e autores, alimentando um sem número de obras científicas e de ficção. Ironicamente, muitas desses alertas são veiculados através dos próprios meios que buscam denunciar, servindo assim como um instrumento para fomentar aquelas coisas mesmas que querem evitar. A indústria cinematográfica é plena de tais casos!

Os riscos apontados são diversos e graves, todos devidamente documentados e analisados em uma extensa e diversificada bibliografia. Não há segredo algum. Os problemas são de toda sorte, físicos, emocionais, cognitivos e espirituais, e  afetam tanto os indivíduos em suas singularidades como todo o tecido social. Tal produção biográfica aumenta e se diversifica na exata medida em que os problemas se agravam e se alastram como uma epidemia (esta é, aliás, talvez a pior epidemia que já enfrentamos, porquanto seus efeitos devastadores atingem tanto a saúde do corpo quanto do espírito).

Dentre as obras mais recentes que tratam destas questões, ganharam algum destaque os livros do neurocientista francês Michel Desmurget, “TV Lobotomie” (2011) e “A Fábrica de cretinos digitais” (2019), em que se abordam os perigos da TV e das demais telas respectivamente. É aterrador o quadro que desenha diante dos nossos olhos. Depois de tais leituras, nem mesmo o mais alienado dos pais ou dos educadores se sentirá inteiramente confortável ao deixar seus filhos ou alunos entregues à própria sorte diante das telas (no caso de ainda terem condições de compreender o que leram, é claro!).

Mas, se considerarmos o que foi apresentado por aquele autor à luz do conceito de educação clássica e cristã, os contornos daquele quadro assumem traços verdadeiramente dantescos.

Em Aristóteles (que é um dos pilares da educação clássica), podemos encontrar na soma de dois princípios pedagógicos fundamentais, a razão que torna tão difícil resistirmos ao fascínio pelas telas. O primeiro deles nos é apresentado nas linhas iniciais de uma de suas obras mais importantes. Trata-se do desejo natural dos seres humanos pelo conhecimento e do seu amor pelos sentidos, especialmente o da visão.

“Todos os homens desejam por natureza conhecer. Prova disso, é o amor pelas sensações. Os homens amam as sensações por si mesmas, independentemente de sua utilidade, mas acima de todas, eles amam a da visão. O motivo está no fato de que é a visão que mais os faz conhecer, pois é por meio dela que se manifestam mais diferenças”

Metafísica, livro I

O outro princípio diz respeito a constatação de que os homens preferem (por natureza) um estado de descanso a um de trabalho (o ócio ao negócio), pois lhes é mais prazeroso o repouso que a fadiga (Notem, ainda que em termos clássicos a ideia de ócio esteja ligada a atividade intelectual de alto nível, como a filosófica –  na verdade, ela é a forma mais elevada de ócio – tanto na antiguidade, como hoje, isso também significava ficar apenas de pernas para o ar, sem fazer coisa alguma.

Ao somarmos essa lição à anterior, podemos dizer que o aprendizado pela visão é preferível aqueles que se dão pelos outros sentidos, pois esse apresenta mais diferenças com um menor esforço. O aprendizado pela visão é, neste caso, mais passivo e, portanto, menos cansativo. Igualmente, a mera contemplação passiva de imagens é mais prazerosa que uma contemplação ativa, pois, demanda menor esforço. Diante disso, não é difícil perceber que o desejo pelo conhecimento e o prazer proporcionado pela visão, naturais ao Homem, encontram nas telas, na sucessão quase infinita de imagens, uma fonte inesgotável de prazer e satisfação fácil e imediata.

Qual é o problema aqui em questão? Por que a exposição às telas configura algo nocivo? Para que vocês percebam a gravidade do que estou lhes mostrando, é preciso que tenham em mente algo importante sobre a natureza do conhecimento. O conhecimento enquanto tal, não é da ordem das coisas particulares, mas do universal, ele é algo abstrato, não concreto. Isso significa que sua aquisição, stricto sensu, não é uma operação que possa ser realizada, passiva e exclusivamente, por meio da percepção sensível. Embora o conhecimento em muitos casos dependa dos sentidos e das coisas percebidas por meio deles, ele os transcende. Ver uma “árvore”, é diferente de conhecer a “Árvore”. O primeiro caso está no plano da animalidade, o segundo no plano do humano e do divino. É um ato intelectual, ou melhor, de intelecção. Enquanto os animais percebem as coisas, os seres humanos, além de as perceberem, também as conhecem por meio do intelecto. Inteligir não é o mesmo que perceber por meio dos sentidos. Essa distinção é fundamental e tem implicações pedagógicas profundas.

Para conhecer, é necessária uma atividade laboral da alma, ativa, não passiva, o que requer um esforço conforme o grau de abstração daquilo que é inteligido. Assim, em princípio, o nível de aprendizado é inversamente proporcional ao nível de prazer sensorial produzido. Quanto maior o prazer, menor o aprendizado e vice versa. Por isso que a educação das paixões é uma parte tão importante na formação das crianças. Por meio dela se busca reverter essa tendência da alma humana, de modo a se encontrar prazer naquilo que é mais afastado dos sentidos. (Em um contexto cristão isso se torna ainda mais interessante e significativo. Tendo em vista a queda e o fato de que Deus é espírito, não é de se espantar que os homens tenham uma tendência em suas paixões que os leve para longe do conhecimento de Deus).

Qual a lição prática que podemos aprender com esses princípios apontados por Aristóteles? Na medida que a mera percepção sensorial de algo não é capaz de gerar por si só conhecimento e aprendizado, na medida em que inteligir não é o mesmo que perceber, podemos estar seguros de que a mera exposição às telas não implica por si só em aprendizado. Para ser mais exato, o prazer constante e a facilidade com que é obtido acaba por criar na alma do aprendiz uma condição viciosa, que o impossibilita para aquisição do conhecimento verdadeiro. Ele não mais deseja conhecer, mas apenas o prazer causado pela estimulação sensorial. Um ser nessa condição é, tragicamente, mais um animal que um homem. Interessante dizer que temos atuando aqui, a mesma condição psicológica que alimenta os mecanismos de rolagem infinita das telas dos smartphones e a indústria da pornografia

Além dessas lições, existe outro ponto que é importantíssimo considerar à luz da pedagogia clássica: que o aprendizado se dá, em grande medida, pela imitação de imagens ou modelos. O princípio em questão repousa no fato de nos tornamos como aquilo que admiramos e amamos contemplar. Essa ideia compõe o cerne da educação clássica. E o seu acerto pode ser atestado pelos reiterados alertas que encontramos na Bíblia quanto à idolatria, ao cuidado com aquilo que nos permitimos ver e experimentar, ao cuidado com as companhias e, principalmente, na exortação constante à imitação de Cristo, o modelo para o qual deve se voltar toda a nossa atenção e atividade contemplativa

18E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito.

(2 Coríntios 3.18).

Considerando apenas esses três elementos da educação clássica, não é de todo complicado perceber o potencial destrutivo que o contato desmedido com as telas e suas imagens pode provocar na alma daqueles a elas sujeitados.  Mas o problema é ainda mais grave e aterrorizante. Se consideramos a questão à luz da educação clássica em sua totalidade, temos que as deformações (físicas, emocionais, intelectuais e espirituais) causadas pelo contato excessivo com as telas é apenas um epifenômeno de um problema muito mais antigo, complexo e grave. Ele representa apenas o último ato de um processo que começa no Éden e que consiste na degradação da racionalidade humana, na destruição de sua essência, de sua verdadeira natureza como imagem e semelhança do Logos divino.

Um dos momentos cruciais nesse processo foi o abandono das sete artes liberais, o trivium e o quadrivium, no que tange ao espírito e propósito que as animava. O ensino dessas artes visava, antes de qualquer coisa, inculcar um padrão de pensamento capaz de perceber no mundo seu sentido e unidade, sua coerência e significado. O ensino por meio das artes liberais buscava uma adequação da racionalidade humana (entendida aqui no sentido clássico) com a racionalidade do mundo (que é, senão, a expressão da racionalidade divina); buscava a conformação do logos humano ao Logos divino (que é, Cristo).

Foi graças ao abandono total do paradigma clássico de educação que as mentes e corações de gerações inteiras se tornaram acessíveis e capazes de suportar os mecanismos atuais de destruição… em contraste, uma mente como aquelas que estão sendo preparadas através do resgate desse paradigma educacional, encontra-se praticamente imune a tais estratagemas infernais. Não apenas porque ele se funda na verdadeira natureza e ordem das coisas, mas também porque uma mente cultivada e desenvolvida através dele (do seu currículo e método) não consegue suportar por muito tempo o vazio, a falta de sentido, de coerência e de valor que a exposição às telas implica e impõe. Tal alma tem sede e fome de conhecimento verdadeiros, abstratos, objetivos e universais.

Aqui também temos um paralelo muito interessante com o texto sagrado, quando Paulo fala aos coríntios a partir da distinção entre aqueles que são “carnais” e aqueles que são “espirituais”

 14Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. 15Mas o que é espiritual discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido. 16 Porque quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo.

1 Coríntios 2:14-16

 

E no mesmo espírito nos fala o autor de Hebreus:

 

Ora, todo aquele que se alimenta de leite é inexperiente na palavra da justiça, porque é criança. Mas o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que, pela prática, têm as suas faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal.

(Hebreus 5:13 e 14)  

O problema, portanto, não está localizado na mera exposição excessiva às telas (como certamente entenderão muitos dos leitores daqueles autores mencionados no início), mas no esvaziamento e destruição do logos que dá a esses mecanismos o combustível que os movimenta e anima.

É preciso alimentar nossas crianças, jovens, adultos e nós mesmos com o “leite racional” do qual fala o apóstolo Pedro em sua 1ª epístola.

Desejai afetuosamente, como meninos novamente nascidos, o leite racional, não falsificado, para que por ele vades crescendo

1ª Pedro 2:2.

Nutrir-nos com uma dieta de alimentos sólidos (no sentido espiritual), de tudo aquilo que é verdadeiro, puro, louvável, honesto, digno de honra e louvor (Filipenses 4:8). Assim procedendo, estaremos contribuindo para que nossos filhos ou alunos olhem com verdadeiro desejo os alimentos do alto e que possam, não apenas contemplar e encher seus olhos com as maravilhas dos céus e da terra, mas que um dia contemplem a Face daquele que fez todas as coisas (Apocalipse 22:4).

Professor Daniel Lourenço

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